Mitologia dos pés (19.5.2013)
Braulio Tavares
Mario Quintana dizia que os fiéis beijam os pés de um santo por saberem que são eles a sua parte mais santificada, a que o levou pelo mundo afora. Os pés o conduziram pelas estradas, o levaram ao encontro do mundo, dos pobres, dos pecadores. Se não botasse os pés pra trabalhar, o pretendente a santo teria se deixado ficar eternamente no bem-bom da própria casa, teorizando sobre o mundo e a graça divina. Nunca seria santo; seria um desses pecadores anódinos que não fedem nem cheiram, incapazes de fazer mal a um corpo e de salvar uma alma.
Vejam aquela antiga maldição dos contos populares, da moça que era condenada a sair andando pelo mundo até gastar dez pares de sapatos de ferro. Primeiro pelo peso e o desconforto, é óbvio; depois pela terrível perspectiva temporal dessa caminhada, um castigo de muitos séculos, até que os solados de metal fossem desgastados pela caminhada incessante. Era o castigo da soberba, da indiferença pelo mundo. Vai ter que caminhar, minha filha; “caia na estrada e perigas ver”. Tua maldade é a da ignorância, a de quem se fecha para a existência. Dez sapatos de ferro. Quando puderes finalmente tocar no chão com a planta lisa do pé terás aprendido o que é o mundo.
Castigo parecido ao que recebeu a Sereiazinha do conto de Andersen, que queria ser uma moça normal, queria sair do mar para a terra e namorar um príncipe. Seu pedido é atendido, ela perde o rabo de peixe, ganha um par de pernas; mas para que não esqueça sua condição vai ter que sentir agulhadas dolorosas na sola dos pés cada vez que os pousa no chão. Para lembrar sempre que não é dali, que escolheu vir à terra sabendo que ela a faria sofrer. Para lembrar que é estrangeira, que é de um mundo diferente. “Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho; alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho”. Quem vem de longe vem pra sofrer, quem pisa em terra alheia pisa chapa quente.
Os torturadores da Inquisição mandavam o indivíduo suspeito caminhar dez metros, descalço, por cima de brasas; se não se queimasse seria absolvido. Talvez porque estivessem à procura de líderes espírituais, aqueles já tão calejados que andariam na brasa ardente como se fosse uma grama orvalhada. Uma maneira prática de distinguir os espíritos evoluídos, os mais perigosos, os que valeria a pena executar ou seduzir.
A marca da sola dos nossos pés é a nossa verdadeira impressão digital. A que traz, não a herança com que nascemos, mas o acumulado da nossa experiência, dos nossos caminhos, dos ferimentos que recebemos e curamos. Quanto mais castigados os nossos pés, mais alto teremos subido e mais marcas teremos deixado no mundo que ficou para trás.
Mario Quintana dizia que os fiéis beijam os pés de um santo por saberem que são eles a sua parte mais santificada, a que o levou pelo mundo afora. Os pés o conduziram pelas estradas, o levaram ao encontro do mundo, dos pobres, dos pecadores. Se não botasse os pés pra trabalhar, o pretendente a santo teria se deixado ficar eternamente no bem-bom da própria casa, teorizando sobre o mundo e a graça divina. Nunca seria santo; seria um desses pecadores anódinos que não fedem nem cheiram, incapazes de fazer mal a um corpo e de salvar uma alma.
Vejam aquela antiga maldição dos contos populares, da moça que era condenada a sair andando pelo mundo até gastar dez pares de sapatos de ferro. Primeiro pelo peso e o desconforto, é óbvio; depois pela terrível perspectiva temporal dessa caminhada, um castigo de muitos séculos, até que os solados de metal fossem desgastados pela caminhada incessante. Era o castigo da soberba, da indiferença pelo mundo. Vai ter que caminhar, minha filha; “caia na estrada e perigas ver”. Tua maldade é a da ignorância, a de quem se fecha para a existência. Dez sapatos de ferro. Quando puderes finalmente tocar no chão com a planta lisa do pé terás aprendido o que é o mundo.
Castigo parecido ao que recebeu a Sereiazinha do conto de Andersen, que queria ser uma moça normal, queria sair do mar para a terra e namorar um príncipe. Seu pedido é atendido, ela perde o rabo de peixe, ganha um par de pernas; mas para que não esqueça sua condição vai ter que sentir agulhadas dolorosas na sola dos pés cada vez que os pousa no chão. Para lembrar sempre que não é dali, que escolheu vir à terra sabendo que ela a faria sofrer. Para lembrar que é estrangeira, que é de um mundo diferente. “Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho; alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho”. Quem vem de longe vem pra sofrer, quem pisa em terra alheia pisa chapa quente.
Os torturadores da Inquisição mandavam o indivíduo suspeito caminhar dez metros, descalço, por cima de brasas; se não se queimasse seria absolvido. Talvez porque estivessem à procura de líderes espírituais, aqueles já tão calejados que andariam na brasa ardente como se fosse uma grama orvalhada. Uma maneira prática de distinguir os espíritos evoluídos, os mais perigosos, os que valeria a pena executar ou seduzir.
A marca da sola dos nossos pés é a nossa verdadeira impressão digital. A que traz, não a herança com que nascemos, mas o acumulado da nossa experiência, dos nossos caminhos, dos ferimentos que recebemos e curamos. Quanto mais castigados os nossos pés, mais alto teremos subido e mais marcas teremos deixado no mundo que ficou para trás.
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