sábado, 31 de agosto de 2013



Sorriso audível das folhas


Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?



Fernando Pessoa

quarta-feira, 21 de agosto de 2013



La Pendule, 1957

Robert Doisneau

domingo, 11 de agosto de 2013


Não há tempo


Não há tempo
       há horas
Não há um relógio
       há
       hábitos que
me habitam


O poema dói
o ponteiro corta
a hora que queima
a morte simula


respira
para não me distrair

Fernando Lemos
Fernando Lemos - Atrás da Imagem




A magia da figura.  
Ferreira Gullar


A figura quase desapareceu da arte, porque virou mancha ou foi substituída pela própria coisa


Já no começo do começo, a arte tinha duas faces: uma figurativa e outra não figurativa ou decorativa, sendo que a primeira expressava nosso fascínio pela imagem da coisa real que, para o homem do paleolítico, não era simples imagem e, sim, um outro modo de ela existir.

Tanto pensava assim que, ao desenhar um bisão na parede da caverna, crava-o de setas, certo de que, com isso, magicamente, atingiria o bisão real e facilitaria caçá-lo.

Naturalmente, com a evolução do conhecimento objetivo da realidade, essa identificação da imagem com o ser real se desfez; não obstante, até hoje aquele fascínio se mantém, tendo atravessado as mais diversas civilizações e conceitos de realidade e cultura.

É isso que explica a presença da expressão figurativa nas pinturas murais, nos relevos e nas esculturas, representando o mundo imaginário dos mitos e dos deuses.

Já bem mais perto de nós, no renascimento, a representação da figura humana tenta ultrapassar a fantasia para captar a realidade mesma em sua materialidade. Disso resultou, na verdade, outro tipo de fantasia, pelo simples fato de que a representação da coisa não é a coisa.

Data daí o que se entende por arte da pintura no mundo ocidental e que ampliou a representação das formas e coisas para criar cenas, paisagens e representação de fatos mitológicos, históricos e cotidianos.

Nesse processo, elaborou-se uma linguagem que, além de representar seres e cenas, criou uma espécie de espaço fictício, que emprestou tridimensionalidade à superfície bidimensional da tela.

Esse universo pictórico é implodido no começo do século 20, quando, ao desintegrar-se a linguagem figurativa, ocorreu uma descoberta revolucionária: a de que todas as formas têm expressão, mesmo que nada representem; por exemplo, um pedaço de papel amassado é uma expressão e, conforme a cor que tenha, será uma expressão diferente.

Essa descoberta teve consequências importantes no campo das artes plásticas. Dela advieram as tendências expressionistas, cubistas e, como consequência extrema, a pintura tachista que, como diz o nome, é feita de manchas.

De todo esse processo --que descrevo de maneira simplificada-- surgiria o que se conhece como arte conceitual ou arte contemporânea, cuja característica principal é usar as próprias coisas, não a imagem delas, como expressão.

Claro que as coisas --seja uma pessoa, um animal, um objeto-- são em si mesmos expressões. Isso vale tanto para um objeto natural --um animal, uma pedra-- como para um produto industrial. Tal é o caso do famoso urinol que Marcel Duchamp enviou para a exposição de Nova York, em 1917, tendo-lhe posto um nome ("Fontaine") e uma assinatura fictícia (R. Mutt).

Sucede que, por isso mesmo, essa "obra" não tem a magia do objeto de arte ou, se a tem, está oculta por sua condição natural ou por sua finalidade utilitária que, no exemplo citado, nada tem de mágico ou poético, muito pelo contrário. Para lhe devolver o significado mágico, há que deslocá-lo da situação habitual, da sua funcionalidade. Quem descobriu isso foi Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont, ao escrever em "Les Chants de Maldoror", o seguinte: "belo como o encontro fortuito de uma máquina de costura ou um guarda-chuva sobre uma mesa de necrotério".

Claro, se ponho um objeto qualquer numa situação inusitada, torno-o "desconhecido" e, por isso, mostro-lhe a forma que se apresenta estranha. Sucede que esse é um efeito circunstancial e fugaz, já que, em seguida, a surpresa se desfaz e o guarda-chuva volta a ser mero guarda-chuva, como o urinol de Duchamp de há muito voltou a ser mero urinol, enquanto que a magia da imagem pictórica é permanente, porque inata, essencial.

Uma natureza morta de Morandi, por exemplo, mantém essa magia, esteja o quadro onde estiver. Transformadas em pintura, suas garrafas jamais voltarão a ser meras garrafas.

Enfim, só nos resta constatar que a figura quase que desapareceu da linguagem da arte, ou porque virou mancha ou porque foi substituída pela própria coisa. Não obstante, a imagem figurativa, que nasceu com o ser humano nas cavernas, não morreu: renasceu, faz pouco, nos muros das cidades, à revelia do mercado de arte e graça ao talento dos jovens grafiteiros.


Publicado hoje na Folha de São Paulo