Rufindo era seu nome de batismo. Ele saiu de casa pela manhã, de madrugada, manhã que já atropelava a noite. E no ímpeto da segurança, a triste segurança, com toda a segurança, antes de sair, trancafiou tudo o que lhe restava no recôndito do lar.
Morria de medo de ser assaltado.
Saiu de casa para o trabalho a percorrer veredas que passou sempre por toda a sua vida. Evitando sempre coisas que só a noite consegue oferecer.
Tudo bem que se diga que Rufindo era um rapaz macambúzio, desconfiado, sisudo até, mas, pensando bem, há muito tempo que na sua cidade todos tinham adquirido esses aspectos meio sombrios, portanto, Rufindo assim como o restante da população, estava naquela ampla faixa de normalidade em que todos prezam muito em estar. E por isso mesmo, consequentemente, muito religiosos e inevitavelmente supersticiosos.
No seu caso, era daqueles que evitavam passar por debaixo de escadas, se benzia esconjurando qualquer presságio, e com certeza, devia carregar um patuazinho e tudo mais que se reza.
No entanto ele, naquela manhã, saia de casa atropelando a manhã, que atropelava a noite que atropelava o tempo, esbaforido e controlado como sempre.
E como ainda restava uma última estrela no céu, Rufindo invertendo a ordem cronológica da simpatia, arranjou tempo de se concentrar na estrelinha matutina e trapacear três desejos para a estrela cansada e sair mais tranquilo pelas veredas que lhe sulcavam a vida.
Ávido por segurança (Rufindo era daqueles que confundiam felicidade com segurança completa) optava por uma margem de calçada que decidia ser mais segura, dependendo do movimento, que de uma forma ou de outra, era muito escasso.
Ia caminhando quando avistou, para seu profundo espanto e mal-estar, um gato preto aninhado na outra margem da calçada.
Imediatamente arrepiado, fez o sinal da cruz, esconjurou-se, e caiu num profundo dilema: no engasgo provocado por sua paranóia metafísica, Rufindo permanecia em dúvida se daria uma de vira-diogo batendo em retirada para uma ruela que aparecia logo antes do encontro com o animal ou, se num rompante de coragem e desprendimento, administraria o medo avançando na direção natural da vereda.
Na dor da incerteza, ou na pressa momentânea, ou mesmo no receio de trapacear mais uma vez a sorte, acabou optando por seguir em frente.
E pela primeira vez na vida, mesmo que movido por um profundo pavor, Rufindo foi corajoso. Apressou o passo, se aprumou nos sapatos, limpou o suor das mãos encharcadas e rumou em direção ao seu trabalho a passar pelo gato preto aninhado na outra margem da rua; porém ,com um truque em mente.
Enquanto o gato aninhado em suas patas o encarava do outro lado, ele pensou:
"Tudo o que não pode acontecer é esse maldito gato me cruzar o caminho. Para isso, tenho que tomar a dianteira bem no meio da rua para intimidá-lo. Assim será muito mais difícil dele cruzar a minha frente e sem cruzar a minha frente, eu estou salvo, sem essa de sete anos de azar, pé de pato bangalô, três vezes!"
De qualquer forma, com toda certeza, ele finalmente conseguiu afugentar o bicho que fugiu para os fundos do terreno baldio. Ele alcançou o final da quadra incólume!
Que alívio! Rufindo se benzia triunfante, deu uma piscadela para a estrelinha moribunda que se estava ainda no céu, era só de teimosia, beijou o patuá e dentro de suas possibilidades, conseguiu esboçar um nítido sinal de alegria ao dar uma assobiada, que mais parecia um suspiro.
Em meio aquele êxtase de covardia sublimada, como num átimo dentro do suspiro, Rufindo é abruptamente colhido, atropelado por um veículo em velocidade demencial. Para ser mais preciso, um Maverick branco, de tala larga vindo das profundezas da madrugada, como se estivesse evadindo do próprio tempo.
Até hoje ninguém sabe de onde veio aquela anacrônica viatura, quem estava dirigindo, se é que tinha realmente alguém na direção. Uns dizem que o Maverick era puro V8 em fúria espontânea. Um fenômeno raro, outros alegam ter sido simplesmente um playboy retardatário e bêbado; mas agora o que importa?
Não houve tempo para mais nada, não houve mais nada para Rufindo. Ele, feliz e confiante foi estraçalhado pelo Maverick branco, lançado como uma geléia disforme ao paralelepípedo, só lhe sobrando o último esgar de sorriso no que lhe restara de semblante. Não teve tempo para absorver o susto, prever o impacto nem provar do seu fim. Morreu confiante de sua confiança. Morreu feliz, por falta de oportunidade, por impossibilidade. Morreu sonhando que vencera a esquina do gato preto, e, vencido, por um Maverick branco, não deixou de ter um final simétrico.
Contudo, Rufindo e suas crenças devem agora ter alcançado o reino dos céus, mesmo não existindo mais nada além daquela estrelinha moribunda.
LOBÃO Jan/ 1999
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