segunda-feira, 15 de dezembro de 2014




II


O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...


Alberto Caeiro
O guardador de rebanhos

domingo, 28 de setembro de 2014


O Desfotógrafo - Eucanaã Ferraz

Vejo tudo agora diferente,
como se o tempo contra o rio
dirigisse e de trás pra frente
eu descrevesse um livro

e cada palavra nele se tornasse
livre e me fizesse livre
e sílaba sílaba toda memória
desaparecesse – sumisse! -

como se, na nossa frente, tudo
o que fomos um dia num passe
de mágica evaporasse num passe
de música, num passo – no ar!

Hoje tudo dá-se a ver sem dor,
limpo, sem um traço de paixão.
Os poemas se apagaram, e, repara
façamos um balanço: de nós

restou não mais que a folha livre
de depois do livro, retrato em
branco em branco.

domingo, 1 de junho de 2014



"- Você avança com a cabeça voltada para trás? - ou então: - O que você vê está sempre às suas costas? - ou melhor: - A sua viagem só se dá no passado?

Tudo isso para que Marco Polo pudesse explicar ou imaginar explicar ou ser imaginado explicando ou finalmente conseguir explicar a si mesmo que aquilo que ele procurava estava diante de si, e, mesmo que se tratasse do passado, era um passado que mudava à medida que ele prosseguia a sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado, não o passado recente ao qual cada dia que passa acrescenta um dia, mas um passado remoto. Ao chegara uma nova cidade, o viajante reencontra um passado que não lembrava existir: a surpresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não conhecidos.

Marco entra numa cidade; vê alguém numa praça que vive uma vida ou um instante que poderiam ser seus; ele podia estar no lugar daquele homem se tivesse parado no tempo tanto tempo atrás, ou então se tanto tempo atrás numa encruzilhada tivesse tomado uma estrada em vez de outra e depois de uma longa viagem se encontrasse no lugar daquele homem e naquela praça. Agora, desse passado real ou hipotético, ele está excluído; não pode parar; deve prosseguir até uma outra cidade em que outro passado aguarda por ele, ou algo que talvez fosse um possível futuro e que agora é o presente de outra pessoa. Os futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos secos.

- Você viaja para reviver o seu passado? - era, a esta altura, a pergunta do Khan, que também podia ser formulada da seguinte maneira: -Você viaja para reencontrar o seu futuro?

E a resposta de Marco:

- Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá."


As Cidades Invisíveis
Italo Calvino

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Pablo Picasso
O Velho Guitarrista, 1903.



Pablo Picasso
Violino e uvas
1912