sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

FERREIRA GULLAR

Um novo realismo

É imprescindível que a obra inusitada transcenda a banalidade e a sacação cerebral ou extravagante

Quem, como eu, admite que a vida é inventada e que a arte é um dos instrumentos dessa invenção terá do fenômeno artístico, obrigatoriamente, uma visão especial.

Não é só através da arte que o homem se inventa e inventa o mundo em que vive: a ciência, a filosofia, a religião também participam dessa invenção, sendo que cada uma delas o faz de maneira diferente, razão por que, creio, foram inventadas.

Se a filosofia inventasse a vida do mesmo modo que a ciência ou a religião o faz, não haveria por que a filosofia existir.

A conclusão inevitável é que todas elas são necessárias, ainda que cada uma a seu modo e sem a mesma importância para as diferentes pessoas. E o curioso -para não dizer maravilhoso- é que, de uma maneira ou de outra, a maioria das pessoas, senão todas, usufrui, ainda que desigualmente, de cada uma delas.

A arte é exemplo disso. Não importa se esta ou aquela pessoa nunca viu a Capela Sistina, porque, no dia em que a vir, se renderá à sua beleza. Isso vale igualmente para a ciência, a religião ou a filosofia, que atuam sobre nossa vida, quer o percebamos ou não.

É que somos seres culturais, e não apenas porque nos apoiamos em valores éticos, estéticos, religiosos, filosóficos, científicos -mas porque eles são constitutivos dessa galáxia inventada que é o mundo humano.

Como numa galáxia cósmica, a diversidade da matéria e as relações de espaço e tempo, de presente, passado e futuro, fazem com que, de algum modo, tudo ali seja atual, já que qualquer um de nós pode encontrar numa frase de Sócrates, num verso de Fernando Pessoa, numa imagem pintada por Rembrandt, a verdade ou a inspiração que nos reconciliará com a vida.

Isso não significa que devamos pensar como Sócrates ou pintar como Rembrandt e, sim, que a invenção do novo não implica a negação do que já foi feito, mas a sua superação dialética.

Todo artista sabe que a arte não nasceu com ele e que um dos sentidos essenciais de sua obra é incorporar-se a essa galáxia cultural que constitui a nossa própria existência.

Não entenda isso como uma proposta de conformismo, que seria contrária à minha própria tese de que o homem se inventa e inventa o seu mundo, já que seria impossível inventá-lo se apenas repetissem o que já existe.

Por isso mesmo, é perfeitamente natural que alguns artistas de hoje busquem expressar-se sem se valer das linguagens artísticas e, sim, antes, repelindo-as, para inventar um modo jamais utilizado por artistas do passado.

Como já observei, entre esses há os que simplesmente negam a arte e outros que pretendem criar arte valendo-se de elementos antiartísticos ou não artísticos.

Em princípio, suas experiências não têm que ser negadas, uma vez que essa sua atitude radical pode suscitar expressões surpreendentes. E isso às vezes ocorre, embora não seja frequente.

Não resta dúvida de que quem opta por uma atitude tão radical merece atenção e crédito, por seu inconformismo e por sua coragem, mas isso, por si só, não basta.

É preciso que dessa opção radical e corajosa resulte alguma coisa que nos comova e se some a esse mundo imaginário de que já falamos. Honestamente, deve-se admitir que a audácia por si só não é valor artístico.

Nada me alegra mais do que me deparar com uma criação artística inovadora, mas, para isso, não basta fugir das normas, das soluções conhecidas e situar-se no polo oposto: é imprescindível que a obra inusitada efetivamente transcenda a banalidade e a sacação apenas cerebral ou extravagante.

O que todos nós queremos é a maravilha, venha de onde vier, surja de onde surgir.

E aqui cabe aquela afirmação minha -que tem sido repetida por mim e até por outras pessoas- de que a arte existe porque a vida não basta.

Nela está implícito que não é função da arte retratar a realidade, mas reinventá-la. É, portanto, o oposto do falecido realismo socialista que só faltou, em vez de pintar o operário, colocá-lo em carne e osso no lugar da obra.

E nisso não estaria muito distante de certos artistas de agora, ditos conceituais, como a que pôs casais nus em pelo nas salas do MoMA, de Nova York. Como essa arte visa gente de muita grana, bem que poderia chamar-se "realismo high society".

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