ainda ontem
convidei um amigo
para ficar em silêncio
comigo
ele veio
meio a esmo
praticamente não disse nada
e ficou por isso mesmo
Paulo Leminski
[...] A questão do sentido (não-discursivo) expresso pela arte passa fundamentalmente pelo espectador. Quer dizer: ele o apreende a partir de seu próprio jeito de sentir, a partir de seus gostos, cultura, preconceitos, etc. No jogo do sentido estabelecido entre a obra e o espectador cada qual entra com sua parcela de significados. Ela encaminha meus sentimentos numa determinada direção, mas a forma de vivê-los é exclusivamente minha, pessoal, incomunicável. Frente a um drama no cinema, por exemplo, a platéia toda pode entristecer-se, mas o como é vivida esta tristeza é dado por cada um dos indivíduos, no seu íntimo.
Por isso o esteta italiano Humberto Eco diz que a obra de arte é “aberta”: ela é aberta para que cada um complete o seu sentido. Se na comunicação as ambigüidades devem ser evitadas, na arte (uma forma altamente expressiva), pelo contrário, elas são desejadas. Quanto mais sentidos possibilitar uma obra (alguns diriam: quanto mais “leituras” ela permitir), tanto mais plena será. Nas palavras do filósofo francês Mikel Dufrenne, “o espectador não é somente a testemunha que consagra a obra, ele é, à sua maneira, o executante que a realiza; o objeto estético tem necessidade do espectador para aparecer”.
Podemos agora tentar compreender melhor a experiência estética, levantando e discutindo outras características e aspectos seus. Já dissemos que no momento desta experiência ocorre como que uma “suspensão” da realidade cotidiana: o mundo prático é colocado entre parênteses e nos envolvemos com a realidade da obra. Ao apagarem-se as luzes e fecharem-se as cortinas, no teatro, no cinema, na sala de concertos, procura-se, com isso, exatamente reduzir a um mínimo a influência do “mundo externo”, a fim de se atingir um clima mais propício para adentrarmos no mundo da obra.
Nesta “nova realidade”, então, nossa consciência posta-se de forma diferente da usual, distinta daquela maneira de ela se dar no dia-a-dia. A percepção cessa de ser utilitária e se torna estética: deixa de se preocupar com a utilidade do percebido para se concentrar em sua aparência. A percepção prática, segundo discutido anteriormente, interroga o objeto em termos de utilidade. Procura a verdade sobre o objeto, e a procura em torno dele, nas ligações que este mantém com outros através das ações humanas. Já a percepção estética busca a verdade do objeto, e a busca nele próprio, em suas formas, no seu aparecer. É no sensível – e não no conceitual, no intelectual – que reside o ser do objeto estético.
"...Deixamo-nos conduzir, ao longo do dia-a-dia, muito mais pela nossa dimensão simbólica, racional, do que pelas impressões captadas diretamente do mundo através do sentimento. A linearidade e a discursividade da linguagem se impõem ao ser humano (especialmente ao ser humano, “civilizado”) e dele exigem um “esquecimento” daquela percepção mais primitiva, não mediada pelo aparato dos símbolos lingüísticos. Não há um equilíbrio entre o sentir e o pensar, com este se sobrepondo àquele na experiência prática da vida cotidiana; a intelecção, o pensamento, torna-se o timoneiro nesta viagem através da realidade diária. E assim, em termos do esquecimento forçado da “percepção direta” (via sentimento) a que o pensamento nos obriga, é que podemos entender o verso do poeta Fernando Pessoa, quando este afirma, pela pena de seu heterônimo Alberto Caeiro, que “pensar é estar doente dos olhos”.
Na experiência prática, portanto, o sentimento acaba por subordinar-se aos processos intelectivos – simbólicos e conceituais. E não apenas o sentimento, mas a própria imaginação, esta faculdade fundamental do homem. Quando no capítulo anterior foi comentada a consciência reflexiva humana, que nos permite (através dos símbolos) pensar naquilo que está ausente, bem como evocar o que já foi ou virá a ser, estava implícito este conceito decisivo: a imaginação. Pensar no ausente é sempre imaginá-lo, é recriá-lo (como representação) em nossa mente. A imaginação, desenvolvida com a capacidade para criar e utilizar sistemas simbólicos, é o traço distintivo do homem: os animais não a possuem.
Contudo, na experiência prática a imaginação está a serviço da percepção utilitária: não lhe são permitidos vôos utópicos; ela deve permanecer centrada na funcionalidade dos objetos percebidos. A realidade cotidiana exige-lhe disciplina e pés de chumbo. Deixá-la exceder-se e flutuar, no âmbito desta esfera pragmática, corresponderia ao delírio e a loucura. "
O que é beleza: experiência estética
João Francisco Duarte Jr