quarta-feira, 23 de março de 2011

A Permanência do Mundo e a Obra de Arte

"Entre as coisas que emprestam ao artifício humano a estabilidade sem a qual ele jamais poderia ser um lugar seguro para os homens, há uma quantidade de objetos estritamente sem utilidade e que, ademais, por serem únicos, não são intercambiáveis, e portanto não são passíveis de igualação através de um denominador comum como o dinheiro; se expostos no mercado de trocas, só podem ser apreçados arbitrariamente. Além disso, o devido relacionamento com uma obra de arte não é "usá-la"; pelo contrário, ela deve ser cuidadosamente isolada de todo contexto dos objetos de uso comuns para que possa galgar o seu lugar devido no mundo. Da mesma forma, deve ser isolada das exigências e necessidades da vida diária, com as quais tem menos contato que qualquer outra coisa. Ao argumento, não interessa se esta inutilidade dos objetos de arte sempre existiu ou se, antigamente, a arte servia às chamadas necessidades religiosas do homem, tal como os objetos de uso comuns servem a necessidades mais comuns. Ainda que a origem histórica da arte tivesse caráter exclusivamente religioso ou mitológico, o fato é que a arte sobreviveu magnificamente à sua separação da religião, da magia e do mito.
Dada a sua suma permanência, as obras de arte são as mais intensamente mundanas de todas as coisas tangíveis; sua durabilidade permanece quase isenta ao efeito corrosivo dos processos naturais, uma vez que não estão sujeitas ao uso por criaturas vivas - uso que, na verdade, longe de materializar sua finalidade inerente (como a finalidade de uma cadeira é realizada quando alguém se senta nela), só pode destruí-la. Assim, a durabilidade das obras de arte é superior àquela de que todas as coisas precisam para existir; e, através do tempo, pode atingir a permanência. Nesta permanência, a estabilidade do artifício humano, que jamais pode ser absoluta por ser o mundo habitado e usado por mortais, adquire representação própria. Nada como a obra de arte demonstra com tamanha clareza e pureza a simples durabilidade deste mundo de coisas; nada revela de forma tão espetacular que este mundo feito de coisas é o lar não-mortal de seres mortais. É como se a estabilidade humana transparecesse na permanência da arte, de sorte que certo pressentimento de imortalidade - não a imortalidade da alma ou da vida, mas de algo imortal feito por mãos mortais - adquire presença tangível para fulgurar e ser visto, soar e ser escutado, escrever e ser lido.
A fonte imediata da obra de arte é a capacidade humana de pensar, da mesma forma como a "propensão para a troca e o comércio" é a fonte dos objetos de uso. Trata-se de capacidades do homem, e não de meros atributos do animal humano, como sentimentos, desejos e necessidades, aos quais estão ligados e que muitas vezes constituem o seu conteúdo. Esses atributos humanos são tão alheios ao mundo que o homem cria como seu lugar na terra quanto os atributos correspondentes de outras espécies animais; se tivessem que constituir um ambiente fabricado pelo homem para o animal humano, esse ambiente seria um não-mundo, resultado de emanação e não de criação. A capacidade de pensar relaciona-se com o sentimento, transformando a sua dor muda e inarticulada, do mesmo modo como a troca transforma a ganância crua do desejo e o uso transforma o anseio desesperado da necessidade - até que todos se tornem dignos de adentrar o mundo transformados em coisas, reificados. Em cada caso, uma capacidade humana que, por sua própria natureza, é comunicativa e voltada para o mundo, transcende e transfere para o mundo algo muito intenso e veemente que estava aprisionado no ser.
No caso das obras de arte, a reificação é algo mais que mera transformação; é transfiguração, verdadeira metamorfose, como se o curso da natureza, que requer que tudo queime até virar cinzas, fosse invertido de modo que até as cinzas pudessem irromper em chamas. As obras de arte são frutos do pensamento, mas nem por isso deixam de ser coisas. O processo de pensar, em si, não é capaz de produzir e fabricar coisas tangíveis como livros, pinturas, esculturas ou partituras musicais, da mesma forma como o uso, em si, é incapaz de produzir e fabricar uma casa ou uma cadeira. Naturalmente, a reificação que ocorre quando se escreve algo, quando se pinta uma imagem ou se modela uma figura ou se compõe uma melodia tem a ver com o pensamento que a precede; mas o que realmente transforma o pensamento em realidade e fabrica as coisas do pensamento é o mesmo artesanato que, com a ajuda do instrumento primordial - a mão do homem - constrói as coisas duráveis do artifício humano (...)"

ARENDT, Hannah - A Condição Humana

Dica de Irajá Menezes

Nenhum comentário: